digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

terça-feira, outubro 17, 2017

Faisão e vinho da Borgonha

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– Sentiu-lhe os lábios?
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– Isso importa-lhe?
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– …
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– Esta a ser controlador. A querer controlar-me e a ela.
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Não sei se a manipulação vem do controlo ou nisso se transforma.
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– …
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– Está apenas curioso?
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Até só isso pode sufocar.
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– …
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– Está. Sei que sim.
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Não. Não lhe senti os lábios. Nem sequer a beijei.
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Satisfeito?
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– Fantasio. Todas as noites. Cada vez que a vejo passar ou a pressinto ou julgo saber onde está. .
– É adolescência.
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– Depois há… não sei se consigo explicar… Por causa do meu desejo e da minha aflição… receio e angústia de ser por ela enganado. Contudo, não a tive… quanto mais tê-la.
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– A isso chama-se controlo. Não é o único modo, mas também é.
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– …
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– Tem algum compromisso com ela? Que esperança lhe deu?
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– Agora é sua vez de ser curioso, de ser controlador e manipulador.
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– Não seja cínico. Sabe perfeitamente…
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As minhas perguntas eram retóricas.
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Hesito… está transtornado pelo ciúme ou a ser impertinente. Não vale a pena continuarmos esta conversa, que não vale nada.
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– Desculpe.
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– Não tenho de desculpar o indesculpável.
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– Exagera!
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– Não exagero. Mas refiro-me a outra coisa, uma outra forma de perdoar.
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– Como assim?
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– Não o posso perdoar e por várias razões. A mais óbvia é que não fez nada que verdadeiramente valesse a pena pedir desculpa, mas a regra da gentileza assim o impõe.
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O mais importante, ao que me refiro, é a impossibilidade de negar o que se disse. As palavras não recuam. Está dito, seja grave ou indiferente. E o que não tem remédio, remediado está.
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– Não sei se não lhe…
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– Esqueça isso, homem.
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Conte-me lá, o que vos liga.
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– Quase tudo. Porém, fica de fora o que não depende de mim.
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– …
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– Fantasio. Já nos beijámos e já nos tivemos. Porém, não sobrou nada para a realidade.
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– Quando me perguntou se – ou tentou perguntar – se a beijara, respondi-lhe com verdade e sombra. Não lhe contei tudo.
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– …
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Então… explique-se, estou impaciente.
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– Não lhe beijei os lábios. Não lhe toquei nos lábios da boca. Contudo, tive os outros, longamente, do nascer do silêncio após todos se deitarem até ao sono de cansaço no amanhecer.
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– …
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Sinto-me corno!
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– Aquele sentimento que escarafuncha. O medo disso acontecer, mas quase desejando que aconteça. Para ter um motivo para chorar e se escravizar no ciúme.
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– Como foi capaz?!
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– Lembra-se do que me perguntou inicialmente? Disse-lhe que estava a ser intrusivo, com vista a controlar e manipular.
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Acabou de me responder.
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– Estou envergonhado!...
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– Não esteja. Foi sincero.
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As respostas é que acabam por ter importância. Se não lhe disser nada, não tem nada. Seja a pergunta relevante, impertinente, desnecessário ou abissal.
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Digo-lhe mais. Tive-a sem a ter
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Como vê, estamos encadeados pelo desejo e equivocados quanto à sua vontade.
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Só nos diferenciamos quanto ao modo como gerimos esses sentimentos. O senhor é controlador e eu desafogado.
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– Não creio. Serei, mas o senhor também o é.
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Não há posse na fantasia?... Até ao ciúme.
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– …
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Reconheço. Enfim, reconheço. Confesso-me apenas calado.
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Que este segredo fique entre nós.
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– …
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Aceito um Porto branco com água tónica. Fresco.
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– Falta tempo para o jantar. Dá tempo para pedir alguma coisa extraordinária. Jantamos?
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– E o Porto tónico?...
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– Sirva-se.
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Jantamos? Só nós.
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– E se ela…
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– Se ela aparecer convidamo-la para se sentar connosco.
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Muito provavelmente, isso não acontecerá.
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Apetece-lhe alguma coisa em especial?
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– Faisão. Será possível?
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– Provavelmente não… Leva tempo.
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– Poderemos beber um Borgonha?
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– Claro que sim.
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O faisão… Quer fantasiar.
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Beberemos o Borgonha como se tivéssemos o faisão na mesa.
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Vou mandar abrir uma garrafa.
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Em que ano nasceu?
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Acompanho-o no Porto tónico.
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– O jantar será?...
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– Esqueça o faisão. Concentre-se no Borgonha.
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Olhe, esqueça lá isso da idade, do ano do seu nascimento.

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